quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Patrimônios culturais?

O flamenco e a dieta mediterrânea merecem de fato o status especial das Nações Unidas?

Por tentar incluir de tudo, a lista de patrimônios intangíveis da UNESCO pode acabar surrupiada pelos interesses comerciais das nações

por Miguel Anxo Murado 

Desemprego em alta, dívida nacional, mercados; este não tem sido um bom ano para a Espanha no que se refere ao material. Mas na esfera não-material, pelo menos se julgarmos pelos padrões estabelecidos pela lista de patrimônios intangíveis da UNESCO, estamos bem melhor, já que a Espanha entrou com cinco itens na lista deste ano, do flamenco andaluz aos castelos catalães. A falcoaria e a dieta mediterrânea também obtiveram reconhecimento, dividindo este pódio intangível com, entre outras coisas, a comida mexicana, a culinária francesa, a dança das tesouras peruana e a técnica antiga chinesa de construção naval.

A UNESCO começou a compilar esta lista em 2003 para registrar bens culturais “intangíveis” que possam estar ameaçados de desaparecer, tais como canções, danças, línguas, habilidades, ideias, etc. Claro que o plano não está isento de críticas. Há aqueles que pensam que qualquer dinheiro gasto com cultura é dinheiro desperdiçado; há outros que vêem com desdém qualquer coisa feita por minorias; e há quem simplesmente não goste da ONU e critique o que quer que ela faça.

Eu não. Acho que a lista é uma boa ideia. Nossa urgência em preservar e celebrar não é apenas uma forma de contrabalançar as coisas, mas é também parte integral de nossa urgência em destruir e esquecer. As duas coisas derivam do mesmo profundo movimento humano: a curiosidade. Em termos de custo-benefício, há relativamente pouco dinheiro envolvido, e é aceitável pensar que não se desperdiça dinheiro quando ficamos sabendo, por exemplo, que ter tido suas habilidades reconhecidas pela UNESCO permitiu a camponeses de uma remota província da China obter um subsídio que, para eles, é uma verdadeira fortuna. Não, não tenho nada contra a ideia, mas tenho alguns senões quanto aos critérios, que têm sido paulatinamente afrouxados a ponto de não estar mais tão clara a razão do projeto. Pegarei dois itens da lista, o flamenco e a dieta mediterrânea, para explicar por quê.

O flamenco é uma criação cultural extraordinária, mas não é uma tradição antiga. Apesar de provavelmente originar-se de ritmos pré-existentes, trata-se de uma criação recente, desenvolvida no século 19, e ainda em processo de evolução (provavelmente tendo-o feito mais nas duas últimas décadas do que em toda a sua história anterior). Popular, bem sucedido e comercialmente viável como o é, o flamenco não parece precisar de uma proteção especial. Inclui-lo numa mesma lista ao lado de habilidades em extinção ou rituais religiosos antigos não faz mal a ninguém, mas acaba por confundir, mais do que esclarecer, as variedades da experiência cultural, além de transformar a iniciativa em uma enumeração fútil e infinita.

Mas pelo menos o flamenco é uma cultura. E o que dizer da dieta mediterrânea? Não apenas ela é intangível, como se poderia argumentar que, na verdade, ela não existe como “cultura”. Inicialmente imaginada pelo fisiologista americano Ancel Keys após a Segunda Guerra Mundial, esta dieta foi livremente inspirada em produtos e usos dos países do sul da Europa como uma alternativa mais saudável em relação aos modelos nutricionais à base de gordura, mas trata-se de uma criação, uma idealização. Ninguém segue a dieta mediterrânea na região do Mediterrâneo a não ser quando ela é recomendada por um endocrinologista. Por sinal, ressalto que quando Keys realizou sua pesquisa em Creta, a ilha estava sob severo racionamento pós-guerra, o que não faz ser surpresa alguma o fato de os locais não estarem comendo muito do que quer que fosse. De qualquer forma, tal recomendação nutricional pode até ser saudável, mas certamente não é uma tradição e malmente pode ser descrita como uma cultura. Por que, então, consagrar esta forma de lutar contra o colesterol como uma grande contribuição para o patrimônio cultural da humanidade? Receio que a resposta passe pelo interesse da Espanha e de outros países em tentar promover seus produtos agrícolas – o que é bom, mas não tem nada a ver com cultura.

Este é o problema quando se tenta ser inclusivo demais. Atores públicos e outros grupos tirarão proveito de critérios vagos para levar adiante suas agendas. A boa notícia é que eles fazem isso exatamente porque o projeto de fato funciona. Mas é também por causa disso que, caso queira defender sua iniciativa de ajudar aqueles em real necessidade, sendo mais do que um mero selo para o orgulho nacional e estratégias turísticas, a UNESCO deveria resistir a esta tendência.

Tradução do artigo Do Flamenco and the Mediterranean diet really deserve special UN status?, publicado no site do jornal britânico The Guardian em 22 de novembro de 2010.

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