quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Espetáculo à italiana

Na Itália, uma ópera política sobre ópera

por Michael Kimmelman

O La Scala de Milão abriu esta semana com uma nova e, em muitos aspectos, fora de série produção de “A Valquíria”, de Wagner. Não importando o quanto a ópera decaiu como passatempo popular neste país, o início da temporada aqui permanece como o maior evento do calendário cultural italiano, atraindo colunáveis e chefes de estado que pagam quase o preço de um Alfa Romeo usado por um ingresso e pela chance de exibir-se diante dos paparazzi e das câmeras de televisão.

Mais do que um evento social, trata-se também de algo político e simbólico. No fim das contas, um sem número de italianos se importam, ou até emitem opiniões, sobre a qualidade da música. A performance é uma notícia importante. Não há nada equivalente em outra parte da Europa ou na América.

Como de costume, Giorgio Napolitano, presidente da Itália, ocupou o camarote real. Antigo comunista e, como revelou-se, devotado wagneriano, Napolitano é um dos poucos políticos italianos que ainda desfrutam de respeito geral por aqui. Por outro lado, ausente, também como de costume, estava Silvio Berlusconi, o famigerado primeiro-ministro do país, que recentemente se pôs em lençóis ainda piores, uma vez mais, ao revelar sua opinião de que a cultura não lhe importa muito – afirmação surpreendente em uma nação tão dependente economicamente das artes. Se bem que, por estes tempos, quase nada que Berlusconi faz causa, de fato, surpresa.

Quase nada, porque os jornais aqui e na Bulgária têm revelado que Berlusconi indicou Sandro Bondi, seu Ministro da Cultura, para improvisar uma pseudo premiação no Festival de Cinema de Veneza, em setembro, para Michelle Bonev, uma atriz búlgara de 39 anos que seria sua amiga. Cerca de 530 mil dólares de verba federal teriam sido gastos para trazer a atriz e toda sua ‘entourage’ para o festival, e a Rai Cinema, braço da estatal italiana de comunicações que trata do cinema, teria sido instruída a pagar mais de 1,3 milhão de dólares pelos direitos de exibir um filme que a Sra. Bonev produziu, dirigiu e protagonizou.

Investigadores do tribunal italiano de auditores estão de olho em tudo isso. Na abertura do La Scala, pelo segundo ano consecutivo, Bondi estava notadamente ausente, incitando seus detratores a dizer que ele estava com medo de encarar os protestos, incluindo as centenas de pessoas que se acotovelavam do lado de fora do teatro antes da ópera começar, entrando em violento conflito com a polícia, em razão dos cortes no orçamento nacional das artes realizado pelo governo Berlusconi.

Do lado de dentro, antes da performance, Daniel Barenboim, regente convidado chefiando a companhia, realizou um curto discurso no púlpito. Também condenando os cortes, leu trechos do Artigo 9 da Constituição Italiana, que promete proteção ao “patrimônio histórico e artístico da nação”. A plateia aplaudiu. Da forma como estão propostos, os cortes ameaçam tirar dos trilhos a temporada 2011-2012 do La Scala, podendo fechar as portas de outros teatros notáveis de distintas cidades, incluindo o histórico teatro de Gênova, que, ao contrário do La Scala, não conta com ricos patrocinadores privados para compensar as reduções.

De sua parte, Bondi rechaçou as insinuações de que teria agido de forma covarde dizendo à mídia italiana que tinha que estar em Roma para uma votação no Senado de uma nova lei para o setor financeiro, complementando que, de qualquer forma, estava habituado a ataques por estes tempos, tendo que agüentar uma série deles por conta dos recentes desabamentos de construções no sítio arqueológico de Pompeia. Era como se a questão fosse sua saúde mental, e não a bancarrota das lideranças italianas no que diz respeito ao cuidado com o inestimável patrimônio da nação.

O desdém de Berlusconi com a cultura e as desculpas esfarrapadas de Bondi postas de lado, o que salta aos olhos sobre tudo isso é o quanto as casas públicas de ópera italianas, e a artes, de forma mais abrangente, permanecem centrais para a opinião pública, a identidade nacional e o orgulho italiano, mesmo que a maioria dos italianos de hoje não freqüentem óperas ou visitem museus. Na Grã-Bretanha, onde os cortes realizados em muitas políticas públicas incitaram protestos crescentes, incluindo um ataque ao carro transportando o Príncipe Charles nesta semana, o governo comprou o argumento dos líderes do movimento artístico de que a cultura age favoravelmente às relações-públicas e ao motor econômico. Como resultado, os cortes em instituições artísticas nacionais acabaram sendo relativamente modestos.

Aqui, porém, os cortes propostos poderiam aleijar o setor, e ainda que seja verdade que, assim como em outras áreas da burocracia italiana, as instituições culturais do país promovam um número indecente de empregos em que não se faz nada e um sistema sindical estabelecido que protege esses empregos, salvaguardar o patrimônio cultural como questão de bom senso moral e econômico, é, se alguma coisa, mais urgente na Itália do que na Grã-Bretanha. O que acontece em Pompeia e no La Scala se reflete nesta nação e em sua reputação global de forma maior do que o fazem em relação à Grã-Bretanha o que restou em pé de Stonehenge ou o Covent Garden.

Talvez isto seja a causa de por que as manchetes italianas incensaram “A Valquíria” na noite de abertura, abrindo até passagem para os sets escuros e misteriosos e para o diretor da ópera, Guy Cassiers.

Dê crédito a ele. Diferentemente de muitos outros diretores europeus, ao menos Cassiers respeita a música e o texto. Mas em meio aos globos rodopiantes de discoteca, luzes incandescentes, vídeos em câmera lenta de dançarinos se contorcendo e vulcões em erupção, e os tubos de neon vermelho pendurados como vinhas sobre o palco sem razão aparente, sua fé cativante nas habilidades de atuação dos cantores de ópera os deixou inapelavelmente exagerando nas expressões faciais, ou ficando por ali como se não soubessem muito o que fazer. “A Valquíria” é uma ópera intimista, uma suíte de encontros privados entre personagens que abrem demais seus corações uns para os outros, com mais frequência do que expõem suas entranhas. Ela exige de diretor e elenco sutileza e força, minimizações e poder extremos.

Felizmente, Barenboim extraiu tudo isso e mais da orquestra, impulsionando a música quando necessário, deixando a partitura respirar, dando a ela profundidade e tragédia, e oferecendo aos cantores espaço para sussurrar e subir a voz.

Foi pena apenas que Simon O’Neill, vivendo Siegmund, normalmente um cantor esplêndido, estivesse sentindo-se doente, e que Vitalij Kowaljow, substituindo um indisposto René Pape, tenha oferecido uma performance sólida e honrosa, mas levemente insossa como Wotan. Por outro lado, John Tomlinson arrasou como Hunding. Ekaterina Gubanova foi uma Fricka fantasticamente vingativa e cheia de frescor; e Waltraud Meier, também fora de sua plena forma, foi, não obstante, profundo e tocante como Sieglinde.

Já no que se refere a Brünhilde, Nina Stemme cantou gloriosamente. Difícil lembrar de alguém que soasse mais dominante ou à vontade no papel, e isso inclui Kirsten Flagstad.

A turma do amendoim jogou flores em Stemme durante os aplausos finais, assim como ocorreu com Barenboim e o resto do elenco – até num radiante Cassiers. Os jornais italianos do dia seguinte derreteram-se pela ovação de 14 minutos.

Não é de se admirar. O governo italiano pode estar balançando, mas, por uma noite, todo o país tinha algo a saudar.

Tradução do artigo In Italy, a Political Opera About Opera, publicado no site do jornal americano The New York Times em 10 de dezembro de 2010.
http://www.nytimes.com/2010/12/11/arts/music/11scala.html?_r=2&ref=abroad

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Patrimônios culturais?

O flamenco e a dieta mediterrânea merecem de fato o status especial das Nações Unidas?

Por tentar incluir de tudo, a lista de patrimônios intangíveis da UNESCO pode acabar surrupiada pelos interesses comerciais das nações

por Miguel Anxo Murado 

Desemprego em alta, dívida nacional, mercados; este não tem sido um bom ano para a Espanha no que se refere ao material. Mas na esfera não-material, pelo menos se julgarmos pelos padrões estabelecidos pela lista de patrimônios intangíveis da UNESCO, estamos bem melhor, já que a Espanha entrou com cinco itens na lista deste ano, do flamenco andaluz aos castelos catalães. A falcoaria e a dieta mediterrânea também obtiveram reconhecimento, dividindo este pódio intangível com, entre outras coisas, a comida mexicana, a culinária francesa, a dança das tesouras peruana e a técnica antiga chinesa de construção naval.

A UNESCO começou a compilar esta lista em 2003 para registrar bens culturais “intangíveis” que possam estar ameaçados de desaparecer, tais como canções, danças, línguas, habilidades, ideias, etc. Claro que o plano não está isento de críticas. Há aqueles que pensam que qualquer dinheiro gasto com cultura é dinheiro desperdiçado; há outros que vêem com desdém qualquer coisa feita por minorias; e há quem simplesmente não goste da ONU e critique o que quer que ela faça.

Eu não. Acho que a lista é uma boa ideia. Nossa urgência em preservar e celebrar não é apenas uma forma de contrabalançar as coisas, mas é também parte integral de nossa urgência em destruir e esquecer. As duas coisas derivam do mesmo profundo movimento humano: a curiosidade. Em termos de custo-benefício, há relativamente pouco dinheiro envolvido, e é aceitável pensar que não se desperdiça dinheiro quando ficamos sabendo, por exemplo, que ter tido suas habilidades reconhecidas pela UNESCO permitiu a camponeses de uma remota província da China obter um subsídio que, para eles, é uma verdadeira fortuna. Não, não tenho nada contra a ideia, mas tenho alguns senões quanto aos critérios, que têm sido paulatinamente afrouxados a ponto de não estar mais tão clara a razão do projeto. Pegarei dois itens da lista, o flamenco e a dieta mediterrânea, para explicar por quê.

O flamenco é uma criação cultural extraordinária, mas não é uma tradição antiga. Apesar de provavelmente originar-se de ritmos pré-existentes, trata-se de uma criação recente, desenvolvida no século 19, e ainda em processo de evolução (provavelmente tendo-o feito mais nas duas últimas décadas do que em toda a sua história anterior). Popular, bem sucedido e comercialmente viável como o é, o flamenco não parece precisar de uma proteção especial. Inclui-lo numa mesma lista ao lado de habilidades em extinção ou rituais religiosos antigos não faz mal a ninguém, mas acaba por confundir, mais do que esclarecer, as variedades da experiência cultural, além de transformar a iniciativa em uma enumeração fútil e infinita.

Mas pelo menos o flamenco é uma cultura. E o que dizer da dieta mediterrânea? Não apenas ela é intangível, como se poderia argumentar que, na verdade, ela não existe como “cultura”. Inicialmente imaginada pelo fisiologista americano Ancel Keys após a Segunda Guerra Mundial, esta dieta foi livremente inspirada em produtos e usos dos países do sul da Europa como uma alternativa mais saudável em relação aos modelos nutricionais à base de gordura, mas trata-se de uma criação, uma idealização. Ninguém segue a dieta mediterrânea na região do Mediterrâneo a não ser quando ela é recomendada por um endocrinologista. Por sinal, ressalto que quando Keys realizou sua pesquisa em Creta, a ilha estava sob severo racionamento pós-guerra, o que não faz ser surpresa alguma o fato de os locais não estarem comendo muito do que quer que fosse. De qualquer forma, tal recomendação nutricional pode até ser saudável, mas certamente não é uma tradição e malmente pode ser descrita como uma cultura. Por que, então, consagrar esta forma de lutar contra o colesterol como uma grande contribuição para o patrimônio cultural da humanidade? Receio que a resposta passe pelo interesse da Espanha e de outros países em tentar promover seus produtos agrícolas – o que é bom, mas não tem nada a ver com cultura.

Este é o problema quando se tenta ser inclusivo demais. Atores públicos e outros grupos tirarão proveito de critérios vagos para levar adiante suas agendas. A boa notícia é que eles fazem isso exatamente porque o projeto de fato funciona. Mas é também por causa disso que, caso queira defender sua iniciativa de ajudar aqueles em real necessidade, sendo mais do que um mero selo para o orgulho nacional e estratégias turísticas, a UNESCO deveria resistir a esta tendência.

Tradução do artigo Do Flamenco and the Mediterranean diet really deserve special UN status?, publicado no site do jornal britânico The Guardian em 22 de novembro de 2010.