quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Até onde ir?

Os prazeres e os perigos da tradução criativa

por James Campbell

O primeiro romance moderno francês que li, aquele que trouxe à minha boca termos como “vanguarda” e “surrealismo”, foi As Crianças Terríveis, de Jean Cocteau. Vibrei com as travessuras extravagantes dos irmãos Paul e Elisabeth, que logo passam a dormir juntos no “quarto” que dividem com seus amigos adolescentes. A vida na Paris de Cocteau é “o jogo”, com suas próprias regras ou não regras, um estado particular do espírito na passagem entre a infância e a adolescência. Todos os que amam este breve romance buscam destrancar a porta secreta que há entre seus próprios quartos e o quarto na rua Montmartre. Quando a abro agora, sou eu próprio, com a acuidade visual dos 20 anos de idade na Escócia, quem começa a ler, tanto quanto o “eu” experiente e com a vista cansada de quase quatro décadas.

Não havia Café de Flore em Glasgow no início dos anos 1970. A margem esquerda do rio Clyde ainda dedicava-se à construção de embarcações, mas o simbolismo e o existencialismo eram o prato do dia nos pubs em torno da universidade, onde Camus era um herói tão grande quanto Bob Dylan. Aqueles que estudavam francês encaravam seu romance O Estrangeiro na versão original; outros, nos quais me incluo, preferiam a opção conveniente da tradução de 1946, de Stuart Gilbert, intitulada The Stranger – conhecida pelos leitores britânicos como The Outsider. A pressão do calor do meio-dia em Meursault antes de seu ato fatal era muito debatida, assim como a importância de suas palavras iniciais: “Minha mãe morreu hoje. Ou, talvez, ontem; não tenho como ter certeza.” Foi por causa do crime de não ter sentimentos que Meursault se viu diante da guilhotina? Melhor pedir outra rodada.

No fim do ano passado, como dose de extra de isolamento contra um rigoroso inverno londrino, embarquei em um projeto de ler em francês os romances que eu havia devorado tão vorazmente em traduções e que julgava terem ajudado em minha formação. Peguei de novo o livro de Camus, mas dessa vez em uma versão compacta de bolso datada de 1963. A ilustração da capa mostra Meursault na praia nas imediações de Argel, de terno, mas com a cabeça crucialmente descoberta, absorvido entre a imensidão de areia e céu. Instantes depois, ele atiraria cinco balas no árabe que insultara um amigo seu.

À medida que lia, de vez em quando comparava uma frase do texto em francês com a versão de Gilbert – e os resultados eram surpreendentes. Gilbert, amigo de James Joyce na Paris dos anos 1920, adiciona trechos e muda o sentido de outros. Uma parte dessa interferência é trivial, mas qualquer rearranjo nos atributos de um herói, em sua maneira de falar e responder perguntas, muda a percepção de quem é aquele personagem, mesmo que de forma pequena. Quando Meursault é apanhado ao final de uma partida de futebol e reconhecido por um dos jogadores, devolve o cumprimento de maneira silenciosa “en secouant la tête”, literalmente, “assentindo com a cabeça”. Gilbert escreve “acenei com a mão” e inventa um cumprimento verbal: “Bom trabalho!”. Quando Meursault entra em seu restaurante de hábito, a proprietária Céleste pergunta “si ça allait quand même”, que é como dizer “se tudo estivesse bem, de qualquer forma”. Meursault estava no funeral de sua mãe. “Je lui ai dit que oui et que j’avais faim”. “Disse a ela que sim e que estava com fome”.

O Meursault de Gilbert não responde “sim”. Responde “não”, e para uma outra pergunta. Ele está com muita fome. Depois do café “para terminar” – outra redundância – e uma soneca em casa, “fumei um cigarro antes de sair da cama”. Como Gilbert sabia que Meursault fumava na cama é um mistério, já que Camus não diz isso. Todos esses exemplos, exceto o aceno de mão, ocorrem em um parágrafo. A tradução americana, de Matthew Ward, publicada em 1988 como The Stranger, é bem mais de acordo com o original.

Surpresa semelhante me aguardava quando passei para As Crianças Terríveis. O francês de Cocteau é bem mais mercurial que o de Camus, e às vezes recorri à minha velha tradução de Rosamond Lehmann, para a Penguin. Ela omite muitas das divisões de capítulo e espaços entre linhas, introduzindo os seus próprios. Mais importante, dá pouca atenção ao andamento e ao ritmo da prosa de Cocteau – seu sotaque francês. O capítulo no qual encontramos Elisabeth após a morte de seu marido, Michael, começa com uma lista que até leitores com pouco francês entendem com facilidade: “l’héritage, les signatures, les conférences, avec les administrateurs...”. Lehmann abre o mesmo trecho da seguinte forma: “Elisabeth se sentia bastante incapaz de lidar com toda a desgastante parafernália legal de sua viuvez...”. Cocteau escreve que as reuniões e tarefas “accablaient” – arrasavam – Elisabeth. Isso à parte, a frase é capricho da tradutora.

A questão da fidelidade do tradutor burlando as fronteiras nos trabalhos dos quais se encarrega já foi bastante debatida. Todos que se dedicam ao ofício com consciência sabem que estão criando algo novo. O Kafka que muitos de nós lemos pela primeira vez era, em parte, uma construção de Edwin e Willa Muir. Os leitores, como um todo, se preocupam pouco com isso, sendo gratos por ter acesso a bens estrangeiros. No entanto, imagino com frequência o que as pessoas querem dizer quando afirmam gostar da maneira como escreve, por exemplo, Haruki Murakami. Ou Pasternak. Ou o que exatamente os acadêmicos suecos reverenciavam quando deram o Prêmio Nobel de 2000 para Gao Xingjian. E agora terei que me perguntar qual era minha intenção quando falei tanto de Camus e sua prosa baseada nas sensações ou quando dissequei o quase surrealismo de Cocteau. Afinal, o que eu lia eram romances em inglês de Gilbert e Lehmann baseados em ideias originais de escritores franceses.

Na metade do século passado, a vida na França, para muitos britânicos, parecia ser quase uma forma diferente de civilização, com princípios morais perigosos e costumes pitorescos no comer e no vestir. As formas inglesas de expressão intelectual, em larga medida, são empíricas, enquanto o pensamento francês tende mais para a abstração. Gilbert talvez tenha achado que poderia fazer mais ou menos como quisesse com o primeiro romance de um jovem escritor franco-argelino. Porém, quando o estilo de um trabalho é parte integral de sua moral, como no caso do livro de Camus, há espaço, então, para argumentos contrários. Tenho tentado pensar em como uma mão acenando funciona melhor em inglês do que uma cabeça assentindo, ou como pode uma pergunta que sugere um “não” em vez de um “sim” ser imprescindível para gerar algum tipo necessário de reconhecimento em termos locais, mas não tive êxito.

Os tradutores tomam menos liberdades hoje em dia. O romancista e crítico Tim Parks escreveu recentemente sobre a padronização e achatamento dos textos estrangeiros, criando o efeito de haver um “tradutorês internacionalizante” – globalmente palatável, mas bastante insosso. Parks sugere que escritores holandeses, italianos e albaneses estão cada vez mais aptos a soar iguais.

Conforme encarava esses livros no inverno passado, fiquei excitado com a experiência de ler pela primeira vez algo com que acreditava estar familiarizado, mas também tinha a sensação de estar negando parte do meu passado. Busquei outro romance, O Grande Meaulnes, de Alain-Fournier, que morreu nos primeiros eventos da Primeira Guerra, dias antes de completar 28 anos. Apesar de ter sido escrito em 1912, o livro é ambientado nos anos 1890 e possui um charme bucólico bem distante da anarquia do quarto ou de um ato absurdo em uma praia de Argel. Em inglês, a atmosfera sempre me pareceu nebulosa, obscurecendo a essência dos personagens e confundindo a própria história. Entretanto, ao ler em francês quatro ou cinco páginas por dia durante várias semanas, fiquei extasiado. Vez ou outra, dava uma olhadela em uma das duas traduções que tenho em minhas estantes, uma de Frank Davison, de 1959, e outra de Robin Buss, de 2007 – esta, como The Lost Estate. Perto do fim, cheguei ao passeio na floresta entre o narrador e o jovem Frantz, cuja desistência de casar desencadeia a ação principal. A primeira linha do capítulo “L’Appel de Frantz” (“O Chamado de Frantz”) diz: “Hou-ou!”. Essa parte, pelo menos, com certeza poderia ser mantida assim? Pelo jeito, não. Davison arranca o ponto de exclamação e o substitui por um decrescente “Hou-ou...”. Buss mantém o ponto de exclamação, mas altera o choro de Frantz para “Whoo, whoo!”. Havia alguma real necessidade de mudar a estrutura de um choro sem palavra alguma? Não. Quer dizer, troque para “sim”.

James Campbell é autor de “Exiled in Paris: Richard Wright, James Baldwin, Samuel Beckett, and Others on the Left Bank”

Tradução do artigo The Pleasures and Perils of Creative Translation, publicado no site do jornal americano The New York Times em 9 de junho de 2011.
http://www.nytimes.com/2011/06/12/books/review/the-pleasures-and-perils-of-creative-translation.html?_r=1